Quando se fala em transformação digital, é comum focar nos benefícios: aumento de produtividade, eficiência operacional e novos modelos de negócios. Contudo, há um lado B nesse avanço que precisa ganhar o centro do debate. A automação, alimentada por inteligência artificial (IA), já está redefinindo o mercado de trabalho. A pergunta que não quer calar é: quem está mensurando os impactos reais dessa revolução sobre o emprego?
Em junho de 2025, Nova York deu um passo simbólico e poderoso ao se tornar o primeiro lugar nos Estados Unidos a exigir que empresas informem, em casos de demissões em massa, se os cortes foram provocados por tecnologias como IA ou robótica. A regra se aplica quando 50 ou mais funcionários, ou um terço da força de trabalho, são desligados de uma vez. Não há penalidade, apenas um campo adicional no formulário. Parece pouco? Não é.
Essa medida simples inaugura uma nova era: a das decisões baseadas em dados, e não em suposições. Com essas informações, o governo pode planejar políticas públicas mais eficazes de requalificação profissional, seguro-desemprego e incentivos para setores em transição. É o fim do achismo e o começo de uma gestão pública mais inteligente.
Transparência e antecipação: o que as empresas têm a ganhar
Para o setor privado, a novidade acende dois alertas fundamentais. O primeiro é sobre transparência. Ao precisar informar o motivo do desligamento, o C-level passa a reconhecer que decisões tomadas por algoritmos têm impacto social direto e agora mensurável. Essa informação não poderá mais ser escondida sob o tapete da “reestruturação”.
O segundo ponto é sobre gestão de talentos com visão de futuro. Se uma função está prestes a ser automatizada em 12 ou 18 meses, por que esperar pelo layoff? As empresas podem e deveriam mapear desde já as habilidades necessárias para os cargos que estão surgindo, oferecer treinamento complementar e realocar seus profissionais. Isso não só é mais humano, como também mais estratégico.
Essa lógica se conecta diretamente com práticas de outplacement, que vão além da recolocação. Trata-se de construir rampas de transição – dentro e fora das organizações – para que ninguém seja simplesmente descartado no processo de transformação digital.
E o Brasil, onde fica nessa história?
No Brasil, ainda estamos distantes dessa transparência. A CLT prevê aviso-prévio individual, mas não há obrigação de comunicação ao governo em caso de demissões coletivas. O Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2022, que sindicatos devem ser consultados nesse cenário — o que representa um avanço no diálogo. No entanto, nem sindicatos nem órgãos públicos são informados sobre o real motivo dos cortes.
Isso nos coloca no escuro. Em meio a uma revolução tecnológica em curso, o país carece de dados básicos sobre o impacto da automação no emprego. E o timing não poderia ser mais urgente: o Senai estima que 636 mil trabalhadores precisarão ser requalificados em tecnologia e inovação até 2027.
Ao mesmo tempo, o Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 2.338/2023), em debate no Congresso, foca em segurança, responsabilidade e ética da IA, mas ignora a coleta de dados sobre sua influência nas demissões. Já o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), com R$ 23 bilhões em investimentos previstos, fala em “IA para o bem de todos”, mas sem apresentar métricas concretas sobre o impacto nos postos de trabalho.
É como navegar sem bússola. Como requalificar sem saber quem mais precisa? Como investir sem saber onde o calo aperta?
O Que esperar do futuro próximo
A tendência global é clara: os próximos anos devem trazer maior pressão por métricas transparentes. Governos estaduais e o próprio governo federal podem e devem adotar mecanismos semelhantes ao de Nova York. O Brasil tem uma ferramenta poderosa em mãos: o CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), que poderia ser modernizado com um campo extra, algo como “demissão por motivo tecnológico: sim ou não?”. Simples, direto e eficiente.
Outro movimento previsível é a fusão entre plataformas de outplacement e edtechs. Com a automação acelerada, a recolocação profissional exige que o trabalhador esteja se atualizando antes mesmo de ser desligado. Empresas que oferecem mentoria, simuladores de entrevistas e trilhas de aprendizagem em IA devem se tornar protagonistas desse novo cenário.
Além disso, acordos coletivos poderão incluir cláusulas obrigando empresas a oferecer capacitação prévia para funções em risco de automação. Por que não transformar a consultoria com sindicatos em uma oportunidade de desenvolvimento de talentos?
E mais: com a provável exigência de avaliações de impacto algorítmico pelo Marco Legal da IA, departamentos de RH terão um novo papel. Não bastará mais monitorar apenas vieses nos algoritmos. Será preciso mapear também o efeito dessas tecnologias sobre o emprego. Uma espécie de “due diligence” social, alinhada ao espírito ESG.
A regra de Nova York não penaliza empresas que automatizam. Ela apenas exige que digam a verdade sobre os impactos. E ao fazer isso, pavimenta o caminho para políticas públicas mais eficientes e humanizadas.
No Brasil, a hora de agir é agora. Integrar dados de desligamento, qualificação e recolocação não é apenas uma medida de justiça social; é uma estratégia de inteligência econômica. Para quem trabalha com recursos humanos, requalificação ou políticas públicas, a mensagem é clara: o futuro do trabalho será disputado entre quem ignora os dados e quem os transforma em ação.
Cabe a nós – líderes, gestores, empreendedores e formadores de cultura organizacional – decidir: vamos desperdiçar essa vantagem ou usá-la para construir um modelo de inovação mais consciente, inclusivo e estrategicamente brasileiro? O Brasil não precisa reinventar a roda. Mas precisa, urgentemente, decidir se vai acompanhá-la ou ficar para trás enquanto ela gira.
Por Fábio Cassettari, sócio-diretor do Career Group. Publicado no Portal Gazz Conecta